Compreendo pais - e me encanto com eles - que desejariam dar o
mundo de presente aos filhos.
E, no entanto, abomino os que, a cada fim de semana, dão tudo o que
filhos lhes pedem nos shoppings onde exercitam arremedos de paternidade.
E não há paradoxo nisso. Dar
o mundo é sentir-se um pouco como Deus, que é essa a condição de um pai.
Dar futilidades como barganha de amor é, penso eu, renunciar ao
sagrado.
Volto a narrar, por me parecer apropriado à croniqueta, o que me
aconteceu ao ser pai pela primeira vez.
Lá se vão, pois, 45 anos.
Deslumbrado de paixão, eu olhava a menina no berço,
via-a sugando os seios da mãe, esperneando na banheira, dormindo
como anjo de carne.
E, então, eu me prometia,
prometendo-lhe:
"Dar-lhe-ei o mundo, meu amor.
E não lho dei.”
E foi o que me salvou do egoísmo, da tola pretensão e da estupidez
de confundir valores materiais com morais e espirituais.
Não dei o mundo à minha filha, mas ela quis a Lua.
E não me esqueço de como ela pediu, a Lua, há anos já tão
distantes.
Eu a carregava nos braços,
pequenina e apenas balbuciante, andando na calçada de nosso quarteirão, em
tempos mais amenos, quando as pessoas conversavam às portas das casas.
Com ela junto ao peito, sentia-me o mais feliz homem do mundo, andando
cantarolando cantigas de ninar em plena calçada.
Pois é a plenitude da felicidade um homem jovem poder carregar um
filho como se acariciando as próprias entranhas.
Minha filha era eu e eu era ela. Um pai é, sim, um pequeno Deus, o
criador. E seu filho, a criatura bem-amada. E foi, então, que conheci a
impotência e os limites humanos.
Pois a filhinha - a quem eu
prometera o mundo - ergueu os bracinhos para o alto e começou a quase gritar,
assanhada, deslumbrada:
"Dá, dá, dá..."
Ela descobrira a Lua e a queria para si, como ursinho de pelúcia,
uma luminosa bola de brincar.
Diante da magia do céu enfeitado de estrelas e de
luar, minha filha me pediu a Lua e eu não lha pude dar.
A certeza de meus limites permitiu, porém, criar um pacto entre pai
e filhos: se eles quisessem o impossível, fossem em busca dele. Eu lhes dera a
vida, asas de voar, diretrizes, crença no amor e, portanto, estímulo aos
grandes sonhos.
E o sonho da primogênita
começou a acontecer, num simbolismo que, ainda hoje, me amolece o coração.
Pois, ainda adolescente, lá se foi ela embora, querendo estudar no Exterior.
Vi-a embarcar, a alma sangrando-me de saudade, a voz profética de
Kalil Gibran em sussurros de consolo:
"Vossos filhos não são vossos filhos, mas são os filhos e as
filhas da ânsia da vida por si mesma. Eles vêm através de vós, mas não de nós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem. Vós sois os arcos dos quais vossos
filhos são arremessados como flechas vivas."
Foi o que vivi, quando o avião decolou, minha criança a bordo. No
céu, havia uma Lua enorme, imensa. A certeza da separação foi dilacerante.
Minha filha fôra buscar a Lua que eu não lhe dera.
E eu precisava conviver com a coerência do que transmitira aos
filhos:
"O lar não é o lugar de se ficar, mas para onde voltar.
" Que
os filhos sejam preparados para irem-se, com a certeza de ter para onde voltar
quando o cansaço, a derrota ou o desânimo inevitáveis lhes machucarem a alma."
Ao ver o avião, como num filme de Spielberg, sombrear a Lua,
levando-me a filha querida, o salgado das lágrimas se transformou em doçura de
conforto com Kalil Gibran:
Como pai, não dando o mundo nem Lua aos filhos, me senti arqueiro e
arco, arremessando a flecha viva em direção ao mistério.
Ora, mesmo sendo avós, temos, sim e ainda, filhos a criar, pois
família é uma tribo em construção permanente.
Pais envelhecem, filhos crescem,
dão-nos netos e isso é a construção, o centro do mundo onde a obra da criação
se renova sem nunca completar-se.
De guerreiros que foram, pais se tornam pajés.
E mães, curandeiras
de alma e de corpo.
É quando a tribo se fortalece com conselheiros, sábios que
conhecem os mistérios da grande arquitetura familiar, com régua, esquadro,
compasso e fio de prumo.
E com palmatória moral para ensinar o óbvio: se o dever premia, o
erro cobra.
Escrevo, pois, de angústias,
acho que angústias de pajé, de índio velho. A nossa construção está ruindo,
pois feita em areia movediça.
É minúsculo o mundo que pais
querem dar aos filhos: o dos shoppings.
E não há mais crianças e adolescentes desejando a Lua como
brinquedo ou como conquista.
Sem sonhos, os tetos são
baixos e o infinito pode ser comprado em lojas.
Sem sonhos, não há necessidade de arqueiros arremessando flechas
vivas.
Na construção familiar, temos erguido paredes.
Mas, dentro delas, haverá gente de verdade?
Escritor e
Jornalista Cecílio Elias Netto